sexta-feira, 17 de junho de 2011

A situação do negro no Brasil.
A identidade de um povo, num Estado nacional, pode se transformar,
lentamente, seguindo as modificações históricas ou de forma mais veloz,
sobretudo em períodos de guerra ou de grandes transformações locais ou
mundiais. Muitas vezes tais mudanças são geradas durante certo tempo e, a
partir de algum movimento, tornam-se visíveis.
Assim sendo, para entender o presente, é preciso compreender o que a
história significa no passado e para o futuro e, ainda, a diferença entre a
história, os pontos de vista históricos e as interpretações da história.
O Estado brasileiro, escravista durante mais de trezentos anos,
reestruturado por conceitos republicanos excludentes, impôs e estimulou, ao
longo da história, conceitos de nacionalidade que determinaram um discurso
cultural distante da realidade multi-cultural do país.
A cultura brasileira, essencialmente permeada por valores femininos, negros,
caboclos, indígenas, definida por encontros e conflitos, foi mediada,
durante anos, pelo discurso da democracia racial e sua manifestação material
legitimada a partir de uma leitura política branca.
A rica diversidade da cultura dos povos de origem européia aqui recriada, as
africanidades brasileiras, as contribuições asiáticas, judias e árabes, as
expressões indígenas resultantes dos conflitos da colonização, as
características de nossa 'antropofagia', nossa identidade construída com
referência em uma diversidade hierarquizada -, nem sempre essa dinâmica foi
considerada pelo discurso que justifica e teme as desigualdades estruturais.
Começa, porém, a ser desenhada uma cultura de democracia participativa, que
necessariamente inclui a cidadania cultural. O Brasil, Estado/nação, vive,
neste momento, um período privilegiado no que diz respeito às possibilidades
de concretizar transformações fundamentais abortadas em vários períodos da
história. As profundas transformações dos conceitos de identidade nacional
são então amparadas por uma política cultural inclusiva, que começa a se
materializar valorizando a diversidade e desestruturando a hierarquia
herdada da escravidão.
Espelho, espelho meu....
Em 1814, o governo geral do Rio de Janeiro recomenda ao governador da Bahia:
'Determina Sua Alteza Real que V. Exa. proíba absolutamente os ajuntamentos
de Negros chamados vulgarmente batuques, não só de dia, mas muito
particularmente de noite, pois ainda que se lhes permitisse isto para os
fazer contentes não deve continuar esta espécie de divertimento, depois de
terem abusado tanto dela.'
(Com o aumento das revoltas da escravos e de outros grupos pobres,
principalmente a partir do fim do século XVIII, os batuques foram
considerados focos de rebelião e esteticamente proibidos)
O Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do
planeta. A Nigéria, com uma população estimada de 85 milhões, é o único país
do mundo com uma população negra maior que a brasileira.
Responsável pelo maior translado humano da história - entre 3,6 e 5 milhões
de africanos foram importados para o Brasil, de várias partes do continente
africano -, a escravidão gestou estruturas, relações sociais e econômicas,
valores e conceitos, visão de mundo incluindo visão de Estado, que tinham
por meta sua permanência, sobrevida e a manutenção dos privilégios
resultantes.
Só a partir da década de 1930, com base, principalmente, nas teses sobre a
miscigenação e na forma envergonhada de expressão do discurso racista,
consolidou-se no país o mito da democracia racial. O que significa que,
ainda durante a maior parte deste século, foram inibidas ações de combate ao
racismo, a organização cultural e política dos negros brasileiros, e a
implantação de políticas para a superação das desigualdades raciais. No
período pós-Abolição, a ausência de um sistema legal explícito que definisse
as desigualdades e, ainda, as africanidades visíveis da cultura brasileira,
serviu como argumento para que o Estado e a sociedade desconsiderassem a
necessidade de se criar mecanismos para a inclusão do povo negro no processo
de desenvolvimento nacional.
A rica história invisível dos seres escravizados nos vários países
africanos, sua recriação cultural, são apenas parte do ser cultural
brasileiro. A polícia, a prática da medicina e das outras ciências, a
cultura de produção rural e de utilização da terra, a política de imigração,
o sistema político, os métodos utilizados para a sistematização dos dados,
as relações de produção e de gerenciamento da riqueza, o regime de
propriedade e de créditos, o sistema legal e o escolar, o mercado de
trabalho, tudo foi estruturado para atender à necessidade de enriquecer os
senhores, de controlar o escravo ou, depois, para consolidar e justificar as
desigualdades.
Mais de trezentos anos de escravidão, do século XVI até o final do século
XIX, como instituição legal, social e econômica, que determinou o estilo de
vida do Brasil colônia, representam uma referência histórica fundamental
para se compreender as desigualdades raciais no país, e o aprofundamento da
hierarquização dos direitos e da própria definição de humanidade, de valor
social da pessoa.
O escravo, para que a escravidão se justificasse, não era considerado um ser
totalmente humano por nenhuma das instituições, inclusive pela igreja. As
práticas culturais e religiosas, a visão de mundo desse conjunto humano
foram sistematicamente desqualificadas, apesar de sua integração ao modo de
ser nacional, após mais de trezentos anos de convivência cultural, e sendo a
sua força de trabalho responsável pelo desenvolvimento da economia. A
aparência física dos negros, exceto quando se tratava de servir sexualmente
os senhores, foi associada à dos animais e esteticamente desagradável ou
inferior. Seu corpo era para o trabalho e sua força utilizada corno a dos
animais. A participação nas artes, extremamente relevante sobretudo no
século XVIII, pouco ampliou os seus direitos, ou lhes assegurou o exercício
da cidadania.
"Durante a escravidão, e mesmo após, as expressões religiosas negras foram
descritas por escrivão de polícia a que narrava invasões de terreiros ou
derrotas de revoltas, por autoridades eclesiásticas e civis preocupadas em
combater a 'feitiçaria' e a subversão dos costumes..." -
João José Reis
Se o movimento abolicionista foi longo, heterogêneo e, por fim, vitorioso, a
República surgiu como reação ao fim absoluto da escravidão, apesar do
engajamento de lideranças negras no movimento republicano.
Várias peças religiosas tomadas dos 'pretos', africanos, e dos 'criolos',
afro-brasileiros, ainda hoje estão nas delegacias, senão foram destruídas ou
desapareceram.
Principalmente a partir da promoção, pelo Estado, da imigração européia
subvencionada para substituir a mão-de-obra negra, da criação de status
superior de cidadania para os imigrantes recém-chegados em relação aos
negros, das promessas do Estado de embranquecer a nação, da participação
periférica dos afro-brasileiros no processo de industrialização, da fraca
representatividade política, da desqualificação de suas referências
culturais, estruturou-se o que pode ser chamado o sistema de exclusão racial
informal.
O desejo, a quase que necessidade brasileira de ser uma democracia
confundiu-se com o mito desmobilizador longamente cultivado.
*Zumbi, mostra a tua cara !*
Agora, no final de seu quarto de século, o país passa por profundas
transformações. No início dos 1900, representantes do Estado e dos setores
dirigentes prometia que este seria um país branco em cem anos, como forma de
assegurar presença respeitável nos conclaves internacionais. As projeções
para o V Centenário, os cenários desenhados para a o início do próximo
milênio, mostram, entretanto, que a diversidade e a expressão
afro-brasileira agregam valor ao Brasil no cenário mundial.
Mas, que processos culturais permitirão as imensas possibilidades humanas de
valorizar suas diferenças? Que processos transformarão o imaginário social
que manifesta perversamente o racismo envergonhado, e se justifica com a
afirmação de que aqui não se pratica racismo como lá ... ?
Novas referências estão sendo construídas para que a política cultural
inclua a riqueza material e imaterial gestada pelos africanos e seus
descendentes brasileiros.
Os produtores e criadores negros, os intelectuais, movimentos militantes,
todos têm papel relevante nesse processo, e têm sido considerados.
Entretanto, ainda não é possível ter certeza da imagem real de Zumbi dos
Palmares (enquanto são vários os desenhos que retratam Domingos Jorge Velho)
para que, além de ocupar a galeria dos heróis, possamos ter sua foto
estampada nas moedas nacionais. Ou ir além das caricaturas de Anastácia e
Chica da Silva e, ainda, descobrir a história verdadeira do fim de Luiza
Mahin, a mãe de Luiz Gama. Somente diretrizes e investimento político do
Estado têm sido capazes de interferir na estrutura dinâmica cultural e de
criar mecanismos distributivos para compensar as desigualdades históricas.
Isso para que as mudanças não sejam cosméticas.
*Cumprindo a agenda atrasada*
O ano de 1995, tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, último líder da
República de Palmares, quilombo criado em Alagoas, que durou cerca de cem
anos e foi destruído em 1694 , foi um marco na relação negro - Estado e na
cultura do Estado em relação ao negro.
Ao som dos tambores, que no dia 20 de novembro protestavam contra o que tem
sido definido como apartheid sem leis, e respondendo às críticas e propostas
do movimento social negro, o presidente da República, em um ato no Palácio
do Planalto, falou abertamente sobre o racismo, criou o Grupo de Trabalho
para a Valorização da População Negra e elegeu a cultura, nominalmente a
Fundação Cultural Palmares, como uma das áreas de investimento imediato para
iniciar as transformações.
Foi preciso o engajamento pessoal do chefe do Estado para romper a inércia e
a tendência à desqualificação política do negro. Sabe o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso que por decreto não se muda o contexto social, mas que o
círculo vicioso precisava ser rompido e que orçamentos, leis e programas
refletem os conceitos culturais. Ainda não nomeava ali, porta-vozes
confiáveis, intermediários como se costuma fazer - criava, isto sim, espaços
de poder para elaboração de propostas e execução, que, embora ainda
limitados, representavam um ponto de força na estrutura do governo.
A cultura sempre foi o espaço possível para o exercício da sensibilidade
negra, embora essa participação não mudasse o lugar social de seus
realizadores. Principalmente antes de a indústria controlar o setor, o
talento era limitado pelas condições de vida. Além da matriz cultural
brasileira, do imaginário e da visão de mundo serem expressões profundas da
africanidade aqui recriada, a expressão através das artes é fundamental,
mesmo que descontextualizada.
Programas, projetos, convênios, revisão de conceitos e de sua materialização
em apoios e orçamentos estão sendo realizados de forma a se criar um
ambiente que permita a realização das mudanças estruturais projetadas pelos
abolicionistas, adequadas a este final de milênio.
As comunidades negras rurais organizadas em quilombos, importantes celeiros
culturais por sua história, com prática coletiva de produção diversificada,
relação harmônica com o meio ambiente, foram identificadas. Estão sendo
demarcadas as suas terras e eles estão recebendo os seus títulos de posse.
São territórios culturais, são territórios habitados pelas mesmas famílias
por vezes há mais de trezentos anos, vulneráveis devido à ausência, até
então, de sua inclusão nos projetos fundiários do governo. Suas populações
estão sendo capacitadas para potencializar os recursos e programas pilotos
específicos de educação e saúde estão sendo realizados.
Programas de apoio ao desenvolvimento de uma dramaturgia afro-brasileira e
capacitação para a representação adequada desse grupo humano estão sendo
realizados em todo o país. São re-qualificados técnicos em comunicação,
roteiristas, atores, diretores, artistas gráficos, através de convênios de
várias naturezas.
A invisibilidade, ou a exposição desqualificada dos negros e de sua cultura,
eram motivo para a baixa auto-estima, tanto dessa população quanto dos
brasileiros em geral, na sua grande maioria afro-descendentes.
O mapa da produção cultural negra e de sua história urbana e rural está
sendo organizado e já parcialmente disponibilizado através dos meios
informatizados. A história hoje disponível apenas em acervos fechados ou de
difícil acesso, também no exterior, às vezes fragmentada, está sendo
organizada em um banco de dados que inclui toda a diversidade e inteligência
negra brasileira. Peças religiosas estão sendo identificadas e devolvidas
aos seus proprietários, quando não são doadas para o acervo. Sítios
arqueológicos, como a serra da Barriga, e áreas de antigos quilombos estão
sendo estudadas. A história da língua portuguesa no país, da perda das
línguas de origem africana e da 'invenção' da língua que falamos em todo o
território nacional, está sendo sistematizada. A vida de mulheres como Chica
da Silva, Carolina de Jesus, Luiza Mahin; a competência e o desencanto
político de abolicionistas como André Rebouças, Joaquim Nabuco e Luís Gama,
que pensavam o desenvolvimento brasileiro; Machado de Assis; as irmandades;
os terreiros e a ação dos seus líderes espirituais; a sensibilidade e o
universo contraditório dos cientistas; os conceitos de produção
diversificada, em oposição às plantations, desenvolvido por muitos
quilombos; o trabalho sofisticado com metais - toda essa riqueza começa a
estar disponível em várias linguagens para a nação que não conhece a
trajetória ancestral de, no mínimo, quarenta e cinco por cento de sua
população.
A projeção da cultura brasileira no exterior tem sido objeto de ações de
difusão que se desdobram em promoção da imagem do país, valorizando o
multiculturalismo e o intercâmbio cultural. A pluralidade nacional começa a
ser adequadamente representada e a presença de artistas afro-brasileiros
começa a ser mais diversificada no mercado.
O marco físico e, ao mesmo tempo simbólico, da nova postura do governo é a
criação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra.
A compreensão de que a falta de informação mantém a população negras
estagnada nos espaços sociais inferiores, por vezes indiferente a
possibilidades transformadoras e, ainda, que os cidadãos de todas as origens
precisam ter referências para que se orgulhem das nossas africanidades,
levou o governo, através da Fundação Cultural Palmares, a desenvolver e a
implantar tal projeto.
O Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra, cuja placa da
pedra fundamental foi assinada pelos presidentes Nelson Mandela e Fernando
Henrique Cardoso, será inaugurado no marco do V Centenário do Descobrimento
do Brasil, na capital federal, com o objetivo de ampliar a capacidade de
participação dos afro-brasileiros no processo de desenvolvimento humano,
científico e tecnológico do país. O diálogo cultural com a África e com os
países multirraciais ganha novo conteúdo a partir dessa iniciativa.
O reconhecimento da importância da cultura negra no dia-a-dia nacional e de
suas dinâmicas positivas como modelo civilizatório tem se expandido. Sua
essência musical, a capacidade desse coletivo de transformar condições
adversas em fatores de desenvolvimento humano e alegria, sua estética rica
em diversidade, sua religiosidade inclusiva, passam a ser percebidas no
conjunto da nação como elementos positivos da nossa diversidade.
O sistema de valores culturais do Estado, ao incluir a história do negro,
tem se transformado e exigido novas reflexões, novo vocabulário, o
desenvolvimento de novos conceitos de cidadania e, sobretudo, o início de
mais respeito por essas novas vozes num cenário que nunca foi representativo
dessa pluralidade.
Os projetos apoiados pelo Fundo Nacional de Cultura, pelas leis do mecenato,
para obras de conservação e preservação do patrimônio, têm, devido ao
engajamento pessoal do ministro Francisco Weffort, mais e mais incluído o
patrimônio afro-brasileiro. As ações nos Estados e municípios estão sendo
estimuladas a considerar a diversidade local. Dirigentes locais começam a
perceber que o patrimônio criado pelos negros gera recursos e visibilidade
para suas unidades administrativas e que, portanto, os produtores de tal
riqueza devem ser considerados.
*Política multi-cultural*
A nova política cultural brasileira cria imensas possibilidades e muitas
demandas para o Estado e para a sociedade.
O mercado foi motivado, surgiram e foram ampliadas várias publicações
destinadas ao público negro. Uma nova estética, mais inclusiva, começa a ser
visível na moda. A comunicação, inicialmente a oficial e agora, lentamente,
a comercial, começa a tratar o negro como pessoa e a incluir imagens de
seres humanos dos vários grupos étnicos.
0 mercado cultural, entretanto, continua excludente e o financiamento a
produções negras muito tímidas. Há ainda uma imensa distância entre o
discurso cultural e a prática da inclusão. Os produtos do teatro, da música,
da dança, da literatura, do cinema, da televisão e da pintura, apresentados
no cotidiano, estão longe de refletir a dinâmica social. Os produtores, com
referência nos conceitos criados pelo mito da democracia racial, tratam o
negro como segmento, de forma descontextualizada e eventual.
Por sua vez, os movimentos negros, que motivaram com seu ativismo histórico
as mudanças atuais, têm sido parceiros críticos do Estado e começam a atuar
junto a outros setores para aprofundar as transformações e para garantir que
a agenda do governo seja agilizada. A descrença nas instituições e a
indiferença em relação à representação política começam a serem
transformadas no conjunto da população.
Nota-se uma profunda transformação em curso na identidade nacional. A
compreensão das africanidades, aqui recriadas como parte do ethos
brasileiro, muda as referências e rompe as limitações impostas por um falso
eurocentrismo e põe por terra os conceitos de raça e de fragmentação da
diversidade. A inclusão valorizada do negro desmobiliza a necessidade de se
provar que o diferente é melhor ou pior, além de permitir trocas mais
profundas e prazerosas entre os humanos de várias origens.
Entretanto, como os valores do Estado só se transformam através de leis,
programas e políticas, estão sendo organizados dados sobre o resultado dos
investimentos planejados para o período de 1994 a 1999, a fim de que o
próximo plano plurianual inclua metas específicas para a criação de um novo
cenário, até o início da próxima década.
A obra civilizatória brasileira - a possibilidade do privilégio do encontro
superar as marcas da perversidade e as agruras do caminho percorrido -,
começa a ser esculpida ao som dos tambores, com a sabedoria das negras
velhas e a elegância da capoeira.
Não vos alerto por represália
Nem cobro meus direitos por vingança.
Só quero
Banir de nossos peitos
Esta goma hereditária e triste
Que muito me magoa
E tanto te envergonha.
Autoria: Rodrigo Almeida

Nenhum comentário:

Postar um comentário